Cuento Argentino: O Melhor Profe da Vida

26 de mar. de 2013

Eu já disse aqui que fui para um escola bem severa quando cheguei nessa cidade linda-de-meldels, né? Bom, ainda que o colégio não tenha sido a melhor experiência da minha vida, eu tive sim, o melhor professor que eu já poderia ter tido nele.

Professor teria quer ter um salário de rei. Não é qualquer um que pode transmitir ensinamento e formar opinião de pequenos que podem, sim, mudar o mundo. Eu tive muita sorte de conhecer aqui em Buenos o melhor profe que eu já tive na vida, Jesus.

Sim, nome abençoado e aulas cativantes. O Jesus era meu professor de Lengua y Literatura. Espanhol. 8 horas de espanhol por semana com ele. Me lembro bem que quando começaram as aulas eu tinha que levar um livro de 300 páginas para a escola. Meu livro tinha 289, e o Jesus não gostou. Disse que isso não era maneira de começar minha carreira na Argentina, que eu não era responsável, veja só.

Garcia Marquez e seus tempos de cólera, foram os culpados por essa bronca. Me lembro que o livro era complicado de se entender e ainda o ler em espanhol parecia missão impossível. Mas enfim, eu tentei. Jesus nesse dia do livro de 300 páginas, colocou um 1 nas minhas notas. Isso significava que eu precisaria tirar pelo menos um 10 na próxima nota para poder equilibrar e ficar com média 5. O que, para mim, era utópico naquele momento. E daí eu pensei: ''Ok, já estou de recuperação''. E olhem que eu nunca tirei uma nota vermelha na vida.

Engraçado que em São Paulo eu era líder se sala, oradora da formatura, e em Buenos era uma zé ninguém. Isso foi bem complicado, perder essa atenção que eu tinha dos amigos aos professores, era um desafio. Jesus, para poder me policiar e educar, disse que eu teria que ler Garcia Marquez para o outro dia, porque já que o livro não tinha 300 páginas, como ele havia pedido, que eu poderia, então, dar conta de ler o bendito INTEIRO em um dia.

E ele não estava mentindo, no outro dia, me deu uma prova do Amor nos Tempos de Cólera. A prova não era para ser colocada oficialmente nas notas e sim, para me educar. Eu li o livro da maneira como pude, fiquei o dia inteiro no hotel lendo, lendo e lendo. Mesmo sem entender, eu o lia. No outro dia cheguei no colégio morrendo de medo. Durante a aula, todo mundo fazendo exercícios e eu a prova. Prova besta, um resumo do livro, um castigo (?).

Depois desse dia passei a ter medo do Jesus. Medo mesmo, de suar quando ele entrava na sala. Detalhe: quando ele entrava na sala, todos deveríamos ficar em pé para recebê-lo. Um caos, era literalmente um desespero quando eu tinha aula dele. Revisava todos os santos livros antes de sair de casa. Revisava pelo menos umas 5 vezes (tinham dias que eu ia com a mochila aberta para a escola para ter certeza de que eu estava vendo o livro da semana que ele havia pedido).

Até que eu comecei a entender a dinâmica. Ele era um excelente professor, disso eu já sabia, mas grande parte da sua maneira de dar aulas era meio teatral. As vezes ele ria alto e eu me assustava, as vezes ele entrava na sala de aula com um mochila da Billabong (isso que ele tinha lá seus 60 anos) e ninguém podia dar risada dele - o que era impossível. As vezes ele desenhava na lousa o mapa do Homero na sua Odisséia. Sim, insanamente bom.

As provas do Jesus eram mirabolantes. Eu li, em um ano, nada menos que 15 livros para a sua matéria. 15 livros grandiosos entre Cortazar, Borges, Marquez, Homero, Shakespeare, Miguel de Unamuno, Tolkien, etc. Para cada livro ele aplicava, pelo menos, 5 provas. Ele dizia que não tinha como aplicar uma prova só de cada livro porque era humanamente impossível entender direito o que o autor queria que entendêssemos. Que amor.

Jesus dizia que já havia ido a Inglaterra só para fazer a viagem dos Três Mosqueteiros. Incrivelmente apaixonante. Ele colocava jazz nas suas aulas quando tínhamos que produzir textos. E ele as vezes entrava na sala de aula e dizia ''leiam''. E era simplesmente abrir a mochila, pegar o livro de leitura da semana ou do mês e se dedicar a ler. As vezes surgia uma dúvida ou outra sobre o que o personagem queria dizer, e era aberto debate na sala de aula. Como eu sinto saudades dessas aulas.

Acho que hoje sei que ele foi o melhor professor da minha vida. E ele talvez seja um dos culpados por eu escrever o blog. Ele me ensinou a ler de verdade. De agarrar um livro e ir em busca do significado de cada mínimo detalhe que o autor exala, tentando decifrar o seu estado de vida no momento.

Hoje eu sei que o Jesus é uma mistura de loucura argentina, com uma inteligência incrível (ele fala 7 idiomas) e um senso de humor que poucos podem entender. Ele nos obrigava a ir a peças teatrais ver obras de Shakespeare e depois fazer prova, ele nos obrigava a pensar, a fazer brainstormings interessantíssimos. A ter loucura e paixão pela literatura.

E eu finalizo o post dizendo que não só o Jesus é assim, mas vários professores argentinos. As aulas aqui raramente são didáticas. Isso é: talvez você nunca vá aprender tim tim por tim tim o que vai cair na prova. Aulas são feitas para debate, para sair filosofando e brigar pelo seu ponto de vista. É natural você frequentar aulas para participar delas, não para ver slides categóricos com pontos que você sabe que vão estar na prova da semana que vem. É normal você ir para a aula e uma semana antes te dar conta de que o que realmente vai cair no exame está no livro de 500 páginas que você nem pegou para ler. Amo essa didática argentina.

Que tenhamos mais professores argentinos, tipo o Jesus no mundo. Sdds dessas aulas.

12 comentários

  1. Maravilhoso texto! Estou até com vergonha de ainda não ter terminado de ler "Viaje al Río de La Plata" que trouxe de Buenos Aires em Janeiro.

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  2. É triste que aqui no Brasil professor seja leitor de slides. Outros escrevem incessantemente na lousa para que os alunos copiem e só.É por isso que as crianças chegam na quinta série sem saber ler direito. Muito triste...

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  3. Que lindo isso!
    Amanda, posso corrigir uma coisa?
    É que já fiz teatro e tenho birra com isso.
    Peça é aquilo que o autor escreveu - a obra. Nós frequentamos espetáculos teatrais, ou seja, a obra sobre um ponto de vista.
    Desculpa pela chatice.
    Beijos e viva Jesus!!!

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  4. O Brasil carece de "Jesus". O ensino nas escolas brasileiras é, em regra, tão 'decoreba' que não espanta termos um alto índice de analfabetismo funcional. Estimular o pensamento crítico e argumentativo falta em terras brasilis. Mais um ponto positivo para Buenos.

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  5. que bom que você dividiu isso com a gente. foi um tapa na minha cara pra preguiça que eu ando tendo de ler ultimamente.

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  6. Maravilhoso post! Esse post será uma homenagem à minha mãe, que aos 54 anos está cursando o 3º período de pedagogia na Universidade Federal do nosso estado, em meio à várias dificuldades, dentre as quais, problemas de saúdes. Ela é uma versão feminina do Jesus, ainda que acadêmica.
    Parabéns!
    P.S. E Jesus já leu este post? rsrs
    Natali Melo

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  7. OMG que linda. Não sei ehehe, mas não precisa :)

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